© Pedro Geraldes

Audio Walk por Capicua

Capicua

15 / 16junho
15H00 - 20H00
Centro Empresarial Antiga Fábrica Dunil  R. do Barão de Nova Sintra 433, Porto

Transcrição

Há uma lenda muito comum em várias aldeias de Portugal. Os mais antigos ainda se lembram do barulho. (Tecatecatecateca...) Ouviam uma máquina de costura a trabalhar, incessantemente, pelos cantos da casa, no roupeiro, dentro da lata dos biscoitos, no fundo do quintal... (Tecatecatecateca...) 
Diziam que era a mulher da máquina, uma alma penada que não conseguia parar de trabalhar. O pé sobre o pedal, balançando desenfreadamente, fazendo rodar os mecanismos, para a agulhar subir e descer sobre o tecido. Fazia-se ouvir a qualquer hora, levando crianças e velhos a colar os ouvidos às paredes para perceber de onde vinha o som, arrepiados por tão misterioso murmúrio.(Tecatecatecateca...) 
Tal como começava, podia parar de repente, até que um dia parou mesmo e para sempre. E se o ruído da máquina de costura invisível já era misterioso, o seu desavisado e derradeiro sumiço não foi menos intrigante.
É certo que o som é eterno, mesmo que já não seja audível. As suas ondas percorrem o vácuo infinito, viajando pelo universo. Depois de bater uma palma, ou proferir uma palavra, o som emitido já não pode recolher-se. A lenda é certeira! Estamos rodeados de sons-fantasma, ainda que não saibamos. Eles atravessam-nos a carne, reverberando em nós como num tímpano, enquanto mais e mais ruídos são produzidos, num mundo frenético em que o silêncio é uma impossibilidade maior do que a existência de almas penadas.
Já os gestos, que não ecoam, também são do domínio da memória. Os nossos ossos e músculos sabem o caminho das coisas. Estão treinados para ser mecanismo. Para funcionar. Nas fábricas, as tarefas repetitivas fazem das linhas de produção uma engrenagem humana. As mulheres perfilam-se repetindo os gestos coreografados pelo hábito. A sua precisão é a de um relógio. Os movimentos humanos mimetizam as entranhas da máquina e oferecem a sua força para fazer girar o grande motor do trabalho. Chegando a casa, as mesmas mulheres da fábrica têm as mãos adestradas pela função doméstica e repetem gestos, certos e cumpridores, como que tecendo os ciclos circadianos, verdadeiras obreiras dos dias e das noites. Sabem tudo decor. Podiam andar vendadas. Conhecem a distância entre os móveis e as manhas dos objetos, movendo-se de luz apagada, quando todos repousam, menos o cuidado. 
Passar o pano, rodar a colher, acender o lume, lavar a louça, esfregar a roupa, mudar a fralda, alimentar os animais, regar as plantas, puxar os lençóis, ajeitar as almofadas, dobrar a camisa, cortar cebola, enfim, movimentos circulares de um exército, treinado, sincronizado, que dá o sangue para fazer girar a grande roda do quotidiano.
Observando este espaço vazio, devoluto, outrora ocupado por mesas de corte e máquinas de costura, pela dança do trabalho (costas curvadas sobre os tampos, braços ágeis, mãos precisas, pés no pedal), pelo barulho dos motores, pelo vapor dos ferros de engomar, pelos retalhos e pelo cotão acumulado no pavimento, sei que o ruído das máquinas ainda ecoa no espaço, mesmo que não o consigamos ouvir, sei que a memória dos gestos ainda faz mover o ar, mesmo que as sombras não se mexam, sei que o tempo tem memória. Se assim não fosse o que seria da cidade?
O acumular de sedimentos. A amálgama de sons, de corpos, de quotidianos. A sobreposição de camadas de tinta, a sucessão de desgastes e de restauros. É tudo feito de memória. Da pura substância do tempo. Sem passado, nada sobra na cidade. Apesar de nos venderem que a cidade é futuro. Não é. Quando a cidade perde a memória, caímos todos ao chão. É a orfandade. Passamos a vultos, que repetem sons e gestos sem serventia ou sentido, marionetas trôpegas, lançando gritos mudos que ecoam no vácuo universal, como almas-penadas, sem voz, sem rumo, sem propósito. E o pior, é que quando a cidade se abandona, não há sequer silêncio para escutar. Nas cidades sem memória ninguém ouve a mulher da máquina. Nem se quer na lata dos biscoitos. Nas cidades sem memória, não podemos encostar os ouvidos às paredes porque tudo é de cartão, como num cenário. Nas cidades sem memória, nada se produz, nada se fabrica. Está tudo ao serviço, mas ninguém cuida ou é cuidado. Ficamos todos, cada um por si, a ecoar no vácuo, propagando o inaudível e é certo que nem as lendas rezarão por nós, porque as lendas também são memória. As cidades sem memória, não têm costuras, é tudo colado a cuspe. Até porque a memória é como um fio e sem um fio nada se cose.

Biografia

Capicua nasce no Porto nos anos 80, descobre a cultura Hip Hop nos anos 90 e torna-se Rapper nos anos 00. Socióloga de formação, acabou por fazer da música o seu principal ofício e é conhecida pela sua escrita emotiva, feminista e politicamente engajada. A sua discografia conta com duas mixtapes e três álbuns em nome próprio, um disco de remisturas, dois discos-livro para crianças, um disco luso-brasileiro colaborativo e um EP ao vivo, além da direcção artística do álbum de homenagem a Sérgio Godinho “SG Gigante” (2022). Na última década, tem conquistando um público muito diverso e acumulado colaborações com vários artistas lusófonos, tem somado concertos, workshops, conferências, projetos sociais e comunitários (como o OUPA integrado no Cultura em Expansão da CMP ou o Recanto a convite da Arte em Rede). De assinalar é também o seu aclamado percurso como letrista para vários intérpretes e, em particular, do novo disco “Metade-Metade” (2022) de Aldina Duarte que escreveu na íntegra. Tem também somado várias experiências de escrita para teatro (de dramaturgia a bandas sonoras) e conta já com muitos anos de atividade como cronista, na Revista Visão (2015-2021) e agora no Jornal de Notícias. Capicua é também autora de dois livros, um de crônicas e poemas - “Aquário” (Companhia das Letras, 2022) e “Cor-de- Margarida” (Nuvem de Letras em 2023) para o público infantil. O ano de 2024 começa com novidades: um tema novo “Que força é essa amiga” (que é uma versão renovada e no feminino do clássico de Sérgio Godinho) e que assinala uma nova temporada de criação.

Ficha Técnica

Texto e voz: Capicua
Gravação e tratamento de som : João Moreira