© Gisela Casimiro

Fio. Fibra. Desconcerto.

Gisela Casimiro & Catarina Vieira

15 / 16 junho
15H00 - 20H00
Centro Empresarial Antiga Fábrica Dunil  R. do Barão de Nova Sintra 433, Porto

Sinopse

Tear é lágrima e gota e despedaçar e romper em inglês
Tear é mulher em qualquer língua e recomeçar todos os dias

Através da memória, dos seus muitos ofícios, secretos e oficiais, da intimidade das vozes encostadas ao ouvido, duas mulheres contam e recontam histórias, caminham no tempo, de encontro uma à outra. Como reescrever finais para os contos da sua infância? O que farão com as sobras de tecido com que foram marcando o caminho? E qual a volta a dar, se é que há? Conversas com o coração dentro. Porque não há esperança, sem encontro. E o encontro é cada uma das peças que mantêm firme o tear.

Transcrição

Catarina
Estamos no balneário. É a hora da saída. Trocamos a roupa de trabalho pela roupa da vida, a roupa de casa, a roupa que escolhemos cuidadosamente de manhã, junto com o cheiro do sabonete, o óleo brilhante para a pele e cabelo, e o perfume que nos faz levantar. Quais são as cores que te levantam?

O balneário é onde deixamos uma parte da vida, para nos encaixar noutra. Uma missão heroica profana. Quando eu trabalhava numa grande loja de roupa, o balneário era uma sala com 6 metros quadrados, que era também a copa onde fazíamos as refeições, com 2 micro-ondas e a mesa onde aconteciam as reuniões difíceis, onde se decidiam as escalas e onde eram comunicadas as despedidas – palavra suave com outra maior lá dentro. Despedimento. Despedi-me desse trabalho, no dia em que acordei a meio da noite, no meu quarto, em pé, no escuro, em frente ao armário. Acordei a dobrar camisolas e a guardá-las cuidadosamente no roupeiro. A primeira coisa que aprendes quando chegas à empresa é que as camisolas devem ser dobradas no corpo. Sem apoio de mesas ou bancadas. A camisola cola-se ao corpo e o corpo aprende a sua nova função.

No outro dia falaste-me do vapor do balneário do ginásio, onde vais todas as semanas e eu lembrei-me que, se trabalhássemos na Finlândia, provavelmente haveria uma sauna nas traseiras da fábrica. No final do dia as trabalhadoras podem deixar o suor no local de trabalho, antes de colocarem de novo a roupa limpa sobre o corpo, a caminho de uma casa mais oumenos longínqua, de um abraço mais ou menos persistente, das compras do supermercado, dos cães, da ladeira que há que subir antes de meter a chave na portae encarar o sofá, as pessoas que vivem na casa ou a ausência delas.
Na Finlândia, as reuniões de negócios são feitas na sauna, à porta fechada. As pessoas despem-se e sentam-se a suar juntas, enquanto falam da vida. Eventualmente, ao fim de umas horas, nessa intimidade escura, com cheiro de bétula e madeiras antigas, vem a proposta: casa comigo. Quero ficar com 20% da empresa. Não sei o que fazer com a minha mãe.
Imaginei as conversas que teríamos dentro de uma sauna no balneário da fábrica. Memórias. Suspiros. Risos. Conversas picantes e doridas. Conversas com o coração dentro, porque quando a temperatura aumenta, a primeira coisa que deves vigiar é o coração. O coração é uma espécie de termómetro do pânico. Quanto tempo aguentas até explodir? Quanto tempo aguentas até derreter?


Gisela
Tenho estado a pensar no que disseste. Tenho estado a pensar em mulheres que conheci ao longo dos tempos, que trocavam cartas, imagens, roupas, mantimentos entre si.

Hoje em dia já não usamos a palavra mantimentos, não é engraçado? Porque é que será?Tentamos trazer o verbo nutrir, o gesto da nutrição, para aquilo que cuida da alma, mas deixámos de trazer os mantimentos. Os mantimentos parecem ser do que precisamos para os tempos difíceis que estamos a viver. Não sei se concordas, mas veio-me à cabeça.

Se calhar porque um dos sítios onde eu mais encontro conforto é no supermercado, adoro ir ao supermercado, mas já trabalhei numa empresa de entregas de comida para pessoas que detestavam ir ao supermercado. Tenho muito prazer em verdes pensas lindas, abastecidas e organizadas, mesmo se a minha não está. Adoro uma despensa na qual se pode entrar e ficar inteira. Fiquei muito feliz num filme com a Greta Gerwig, há tempos, onde havia muitas reuniões das personagens principais no supermercado. Era como se fosse uma outra dimensão, quase como um embondeiro, era o lugar onde não se morria. Pensei, eles compreendem-me.

Houve alturas muito difíceis na minha vida em que eu não tinha sequer dinheiro para esses mantimentos e ficava no supermercado a dar voltas sem saber o que fazer, em saber o que comer, ia fazer contas na calculadora e de cabeça, em papel, a entender o que era verdadeiramente essencial para mim. Dessas idas ao supermercado já surgiram muitas histórias bonitas, sobretudo com mulheres. Mulheres que me pediram ajuda ou a quem eu recorri por precisar de alguma coisa e que nunca mais esqueci, mesmo sem saber os seus nomes. A pessoa que está grávida e pede ajuda com uns sacos porque está com a tensão baixa, alguém que não consegue chegar a um pacote de bolachas na prateleira superior, alguém que nos pergunta se podemos tirar fotografias às máquinas de costura e ao preço para enviar por WhatsApp à sua irmã em Cabo Verde. Ter visto um soutien de desporto cor-de-rosa num supermercado noutra parte da cidade, num dos meus antigos bairros, não haver o meu tamanho e, no dia seguinte, a minha mãe visitar-me e, sem saber, trazer exactamente essa peça, nessa cor.

Os mantimentos são aquilo que levamos para o abrigo quando sabemos que vamos ficar muito tempo sem sair, quando tudo está em risco. Ultimamente temos visto auroras e meteoros deste lado do mundo. Noutras, parecem meteoros mas são bombas. E a roupa é a mesma há muitos meses, está ensanguentada e poeirenta e está colada ao corpo, e não há como trocar. Acumulam-se os corpos e escasseiam os alimentos. Escasseiam os sobreviventes. Penso em tudo isso.


Catarina
Lembras-te daquele dia em que deixaste na porta de cada um dos cacifos um bilhete com um poema, um provérbio, uma reflexão? A mim calharam-me as palavras do Tolentino Mendonça:

“Há momentos na vida em que nos sentimos a ‘andar para trás’. Essa espécie de inversão de marcha bate-nos muitas vezes à porta por uma dor, pela notícia inesperada de uma doença ou de um luto, pelo baque seco de um fracasso ou de uma desamparada contrariedade com que não contávamos. [. . .]
O andar para trás faz-nos, de repente, percepcionar a realidade que nos cabe como um estranho puzzle sem encaixe possível. E a verdade é que, em certas etapas, temos de aceitar que a existência é também desencaixe, áspero enigma do qual não podemos desistir, mas que devemos aprender a abraçar com esperança.”
No dia seguinte, escrevi à mão, à pressa, num papel mal-amanhado as palavras ‘não há esperança sem encontro’ e colei-o na tua porta. A fita cola prendeu o papel no cacifo e a frase prendeu-nos à vida, durante uns meses. Não há esperança, sem encontro. Não há esperança, sem encontro.

Ando desconcertada. Um puzzle enigmático instalou-se na minha vida. Sonho com punhos, mangas, costas, avesso e direito misturados. As peças têm mudado de lugar, mas o desencaixe permanece. Quando a vida se vira do avesso, as mulheres são, muitas vezes, as primeiras a partir à procura do avesso do avesso do avesso. Tem de haver um avesso, para descoser e costurar.

Quando a vida se vira do avesso, as mulheres são, muitas vezes, as primeiras a partir à procura do avesso do avesso do avesso. Tem de haver um avesso, para descoser e costurar.

Gisela

“Agulha e linha

Agulha e linha
uma arte que não domino,
mas gostaria.
Talvez assim
nunca perdesse ninguém.
Talvez assim não me escapassem
os sinais, o tempo
a palavra mãe.”
Perguntaste que cores me elevam. Antes, o azul. Depois, veio o roxo, que ainda persiste e encontrou o seu lugar até num poema. O vermelho. O branco. Houve um tempo em que só vestia de preto. E houve um tempo em que não sabia que os padrões africanos também eram para mim. Via a minha mãe usá-los apenas em casa. Hoje em dia, tento ter cada vez mais peças dessas. Ali, cabem todas as cores e tamanhos.

A minha mãe conta-me sempre que os primeiros vestidos que eu tive foram feitos pela minha avó, sua mãe. Quando vejo as poucas fotografias dessa altura, percebo que ainda tento caber nos vestidos da minha infância, no tempo antes do fogo, da distância. Ainda tento ser aquela menina brevemente moldada pelo amor. A minha mãe é muito talentosa. Ela antes sabia desenhar também. Ela costura, faz renda, crochê, tenho camisolas, golas, carteiras, estojos feitos por ela.

Gostava muito que ela me ensinasse a costurar, a coser, gostava de criar essas memórias, de trazer isso para a minha prática, e tenho muita pena não ter aprendido ainda. Ela cozinha muito bem. É uma pessoa com um talento para a decoração inato e eu gostava de ser mais como ela em todos esses aspectos, mas nunca lho disse. Um dia devia dizer.

A minha mãe também era a pessoa que me trançava o cabelo e foi muito difícil, após anos sem tranças, ir ter com alguém fora de casa e pagar para ser trançada. Não pelo custo, mas porque é um tempo entre mãe e filha e que não é igual a mais nada no mundo. As tranças eram usadas pelas pessoas escravizadas para transportarem consigo sementes e grãos, bem como para desenhar mapas secretos para os caminhos de fuga rumo à liberdade. Embora consumissem o nosso tempo - sobretudo o nosso, das raparigas - criaram também um momento único de ligação com mães, irmãs, tias, avós. Quem sabe um cordão visceral, forte e tenso fora do corpo, um guia para o regresso a casa, uma raiz que pode ser transplantada. Talvez o meu cabelo tenha sido rédeas quando eu não me sabia ainda indomável, e a interrupção do ritual fosse inevitável.

Catarina
O meu avô trabalhou toda a vida rodeado de camisas. Gostava de contar histórias, contava-as como se elas tivessem realmente acontecido. Uma ocasião, fez um fato muito elegante que era gabado por todos quando ele passava na rua. Toda a gente queria saber quem tinha costurado aquele fato. Uma ocasião, pegou na espingarda e pôs o irmão para correr, para ele não se armar em doutor. Uma ocasião, desceu a serra de Sintracom o Mini apoiado apenas em duas rodas.

A mãe dele, a minha bisavó, fazia o mesmo. Ela lia os romances de cordel e depois contava as histórias como se ela as tivesse vivido e como se ela fosse a protagonista. Os amores intensos, as intrigas de ciúme e paixão. E chateava-se quando alguém questionava a veracidade da história ou a incoerência dos detalhes.
Qual é o romance que gostarias de contar como se o tivesses vivido?

Gisela
Soube uns dias depois da sua morte que a escritora Alice Munro tinha falecido. Só tive um livro seu, de contos, oferecido por uma amiga escritora como eu. No Instagram apareceu um vídeo em que Alice falava sobre reescrever constantemente os finais das histórias que a assolavam, para que terminassem bem. Deu o exemplo da Pequena Sereia que, na sua versão original, é realmente uma história triste. É, também, uma das histórias do livro que me fez querer ser escritora.

Nunca pensei em mudar os finais das histórias que lia, apenas em contar histórias minhas, novas, mais ou menos felizes. Mas ouvir-te falar do balneário lembrou-me de um momento em que, tal como a Pequena Sereia, também o meu príncipe se apaixonou por outra. Mas antes, já te disse que nunca me contavam ou liam histórias para adormecer? Talvez por isso eu goste tanto de contar e de ouvir contar histórias.

Havia um rapaz na minha escola secundária que era aluno de ciências. De uma das minhas aulas, num edifício, eu via uma das suas, no edifício ao lado, numa sala onde todos usavam batas e faziam experiências. Uma vez, no dia dos namorados, tínhamos a possibilidade de surpreender alguém de quem gostássemos. Lá ia a minha melhor amiga, que queria ser actriz e fazia parte do grupo de teatro da escola, de sala em sala com as prendas, bilhetes e tudo o mais. Penso que ia vestida de anjo, ou cupido já não me recordo. Quando chegou a vez de ela lhe recitar um poema escrito por mim, gerou-se uma confusão e ele achou que era dela. Ou então não achou, se calhar os colegas apenas ficaram entusiasmados coma beleza daquela rapariga. Noutra ocasião, deixei-lhe bilhetes nos bolsos das calças do cacifo, com a cumplicidade de uma contínua romântica e ainda mais ousada do que eu. Há quem insista em cair onde não há colo e depois acabe a precisar de mais.

Outro dia escrevi uma longa carta e ainda não a entreguei. Talvez nunca entregue, mas ainda não consegui desfazer-me dela. Dizem que é um ritual catártico, escrever o que sentimos e, depois, queimar, como quem se despe num balneário depois de um grande esforço físico e deixa que a água e os vapores lavem tudo e lhe dêem leveza.

Catarina
Ela estava à procura do irmão. Ele fora transformado num ganso e tomara a rota da migração. Desapareceu um dia do palácio, uma cabana ao lado de uma floresta muito antiga. Procurou-o em todos os baldios onde cresciam ervas sem nome: parques de estacionamento, fábricas fechadas, minas abandonadas, pedreiras, hortas improvisadas nas encostas esconsas da cidade.
Um dia, quando estava perdida num descampado, tropeçou numas urtigas e a sombra da árvore inclinada falou: deves colher todas as urtigas. Abri-las, pisá-las, descarná-las com as mãos nuas. Secar os fios à sombra. O fuso dará forma ao fio.
Ela não sabia nada sobre o ciclo das fibras. Aprendeu depressa. Se queres ver o teu irmão de volta, deverás tecer uma camisa feita de urtigas. No dia em que a camisa estiver pronta, em frente ao mar, verás 3 gansos a caminho do sul. Deverás compreender qual deles te espera. É a esse que deves vestir e o teu irmão regressará.
Ela não sabia ainda que a profecia tinha falhas e várias perguntas.
Quando as mãos ficaram vermelhas, ela escondeu-as dentro de umas luvas pretas.
Durante o dia escondia as chagas e à noite tecia. Tinha as pernas e os braços feridos. Mas continuava a tecer. Chorava sobre as feridas. A água das lágrimas era a primeira parte da cura. A água do mar era a segunda. Teceu a camisa às escondidas e quando ficou pronta, encontrou uma velha na floresta que lhe indicou por onde seguir. Acordou numa praia deserta, sem folhas. O rumor do mar era o som mais incrível que alguma vez tinha ouvido na vida. Ela entrou no mar, com a camisa vestida. Nada aconteceu. Ficou a boiar, enquanto a camisa molhada revelava as suas formas à transparência. Tornava-se cada vez mais absurda e cada vez mais leve. Em cima, no recorte azul do céu, viu 3 gansos que sobrevoavam a costa. Estavam de partida ou de regresso? Soube imediatamente qual deles iria descer e aproximar-se.

Não te posso dar esta camisa. – disse. Eucosturei as urtigas na pele e fiz-me camisa dos abraços possíveis. Esta pele é o que tenho. E tu podes partir agora.

Os contos são simples. Funcionam. Queremos que as coisas funcionem. Recebo do conto as instruções mágicas e concretas. Há um preceito, um protocolo e há o tempo para cumpri-lo. O luto estará terminado quando a camisa estiver terminada. Não há dúvidas. Eu olho as urtigas e sei o que me espera.
Conto-te o conto de memória. Não me lembro a razão pela qual era tão difícil tecer a camisa, ou encontrar o irmão perdido. Lembro-me de ler depois que a substância com que as urtigas criam o ardor na pele tem propriedades antidepressivas.

Pessoas desaparecem e é preciso vesti-las. Amortalhar o corpo com o amor que fica. Plantar em algum lugar a fibra que nos mantém de pé.

Biografia

Gisela Casimiro
1984, Guiné-Bissau. Publicou «Erosão», «Giz», e «Estendais». Traduziu «Irmã Marginal», de Audre Lorde. É autora de «Casa com Árvores Dentro», encenada por Cláudia Semedo. Fez apoio à dramaturgia de «Blackface!» de Marco Mendonça, e apoio à criação de «Belonging», de Raquel André. Actuou em espectáculos de Ana Borralho & João Galante, Mala Voadora, Romeo Castellucci. Expôs no Armário, Balcony, ZDB, Galerias Municipais do Porto e Lisboa, MACE, Galeria Reocupa e Appleton. Integra a Colecção António Cachola. Coordena o Clube de Leitura do Batalha. É membro-fundador da UNA-União Negra das Artes. https://linktr.ee/giselacasimiro
Catarina Vieira
1983, Aveiro, Portugal. Criadora e performer baseada em Lisboa. Licenciada em Formação de Atores e Encenadores, pela ESTC (Lisboa, 2007). Mestrado DAS Theatre (Amsterdam, 2018), com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Responsável pela criação e direção artística dos projetos: Chego sempre atrasada aos funerais importantes (Teatro Maria Matos,2018); Matéria, estúdio aberto para a partilha de práticas performativas; As canções que cantamos contra os muros que limpamos (2022), em colaboração com Aixa Figini e Josefa Pereira; Lugar X (2023-2024). www.catarinavieira.net

Ficha Técnica

Texto, voz e gravação de som: Catarina Vieira e Gisela Casimiro
Edição de som: Big Lisbon